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Pela integração do pensamento e da ação

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16/09/2008

Vera F. GasparettoO Seminário Internacional Fazendo Gênero 8 ocorreu de 25 a 28 de agosto de 2008, na Universiade Federal de Santa Catarina. Acompanhamos o Seminário que tratou do tema Corpo...

Andar pelo território do Fazendo Gênero 8 foi uma experiência deliciosa. Saborear os lindos dias de primavera com o encantamento que provocam as pessoas que circulam em busca das múltiplas atividades: conferências, seminários temáticos, mesas redondas, simpósios, atividades culturais, pôster, fotografias, filmes, livrarias, feiras... A bolsa ecológica com a alça lilás é a identidade de uma tribo que tem o desejo de saciar a fome e a sede de ouvir, falar, debater, pensar e repensar os estudos de gênero.
Muitas (a imensa maioria são mulheres, por isso usaremos o substantivo feminino) andam em bandos, tal quais aves procurando o melhor lugar para chocar. Boa parte andava em duplas, mesmo sós, nunca sozinhas. Chocar ali tem o sentido de incubar, pensar longamente, engendrar novas idéias ou o choque do ferir, ofender, escandalizar, pois muitas pesquisas desvendam um mundo das mulheres que é assim: ferido, escravizado, desvalorizado, violentado.
Mesmo o tema mais inusitado foi incluído pela comissão organizadora e pelas contribuições d@s pesquisador@s que apresentaram seus trabalhos. Muit@s arrancaram risos, outras arrancaram lágrimas. Momentos de indignação, momentos de alegria. Falas que levaram a um instante de impotência, falas de profunda esperança. A diversidade deu o tom.
Esse é o registro de quem viveu pela primeira vez a experiência do Fazendo Gênero e mergulhou nas reflexões teóricas acerca dos estudos do campo de gênero. Essa resenha é sobre as falas que mais marcaram as conclusões que vem a cabeça a partir desse mosaico de idéias que aos poucos tomam forma e sentido, ligados ao lugar da minha experiência concreta como assessora do movimento social e sindical:
1) A heterogeneidade e a importância de questões para refletir e aprofundar - ainda restritas ao meio acadêmico - e a importância de visibilizar à sociedade.
2) A necessidade de articulação entre os estudos acadêmicos do campo de gênero e o movimento de mulheres, feminista, social e sindical.
3) A importância da formulação e implementação de políticas públicas, dando concretude às urgentes e necessárias mudanças na vida das mulheres.
4) Há muitos avanços na vida das mulheres, mas muito a ser feito, especialmente no campo da cultura e no mundo do trabalho, com o fenômeno da feminização da pobreza.

Valorizar as realizações e dar novos passos
A mesa redonda Memórias do Feminismo ocorrida no dia 26/8 foi uma sessão histórica com Danda Prado (São Paulo), Moema Toscano (UFRJ) e Heleieth Saffioti (PUC-SP), que expressaram um pensamento unânime: “O feminismo foi o movimento social mais importante do século XX”. Cada uma contou sua vivência histórica e pontos de vista sobre o surgimento do feminismo no Brasil (e na França). “Sinto-me como uma ponte fazendo a ligação ente o passado e o futuro, nesses 33 anos de militância”, conta Moema. Sua fala trouxe exemplos de movimentos que levaram à ascensão do feminismo: o movimento vivo de mulheres de diferentes credos, raças/etnias, classes, gerações, nível de escolaridade, visões políticas de esquerda, produzindo suas pautas, debates conceituais e demandas de políticas públicas como creche.
Heleieth com seu bom humor fez uma breve cartografia do pensamento que marcou parte da luta feminista no Brasil, citando algumas mulheres da década de 1960, formadoras de opinião, como a jornalista Carmem da Silva, a escritora Rose Marie Muraro, a editora Moema Toscano e a Deputada Estadual Heloneida Studart, escritora e feminista histórica.
Essa mesa redonda revelou que olhar dessas personalidades, juntamente com outras experiências, levou à confluência de fatores que mudaram o rumo da história das mulheres no Brasil e no mundo. As experiências militantes das mulheres trabalhadoras (rurais e urbanas), jovens, estudantes, militantes políticas de organizações clandestinas, aliadas às intelectuais e pesquisadoras sobre a questão das mulheres. O que poderia ser uma dicotomia entre a ação e a reflexão se tornou um elo para a transformação.
A “sessão histórica” teve seu complemento no dia 28/8 com a Homenagem a Simone de Beauvoir: 100 anos de nascimento . As professoras da UFSC, Daniela Ribeiro Schneider, Joana Maria Pedro e Miriam Pillar Grossi falaram sobre o contexto histórico em que Simone viveu, @s pensador@s que a influenciaram, sua vida com Jean Paul Sartre, os fundamentos do existencialismo e os motivos que tornaram o casal um paradigmas para as relações contemporâneas. Miriam considera que Simone de Beauvoir deixou uma “obra uterina”, com conseqüências nos movimentos feministas e na vida das mulheres, pois expressou os sentimentos de toda uma geração, num momento de mudanças culturais no século XX.
O mais marcante da experiência do Fazendo Gênero foi o aprofundar sobre os sistemas de dominação simbólica e as mulheres e seus impactos em todo o tecido social, político, econômico, e especialmente cultural e ideológico. O lugar da mulher, construído socialmente por séculos e os nefastos efeitos em toda a vida (individual e coletiva).
Os trabalhos sobre mídia e a linguagem, no Simpósio Temático 08: Discurso e Gênero: a figura feminina trouxeram pontos de vista sobre as representações da figura feminina na linguagem e a implicação ideológica que afeta as mulheres. A linguagem como estruturante do pensamento e da ideologia, e a mídia como um espaço de múltiplas linguagens (simbólicas, escritas e faladas) que veicula ao senso comum valores, crenças e discursos. Segundo Maria Cecília de Lima (FCU/FUP) “as desigualdades são expressas, constituídas e legitimadas pelo uso da linguagem, portanto ela tem implicações políticas”.
Maria Luisa Femenías (Argentina) realizou a Conferência de abertura Corpo, Poder e Violência, também fala sobre os sistemas de dominação simbólica, as transformações no mundo do trabalho, os impactos nos direitos humanos e a cidadania das mulheres. Para ela, os direitos adquiridos dolorosa e lentamente nos últimos 200 anos estão ligados aos Estados modernos, que vive um período de desmantelamento.
O redesenho dos Estados-Nações gera novas fronteiras entre incluíd@s e excluíd@s (entre ess@s últimos as mulheres são maioria). Para Femenías o Estado moderno tem na sua estrutura constitutiva o paradigma patriarcal. Ou seja, o corpo do Estado configurou-se também como corpo do homem. A contracapa do Contrato Social foi feita por homens iguais e a mulher doméstica, a mulher privada. Ou seja, a exclusão das mulheres, calou suas vozes e invizibilizou suas questões nos estados modernos.
A simbiose entre a estrutura normativa e simbólica e a distinção público/privado reduziu as mulheres ao espaço privado, onde não há lei e são “regidas” pelos homens. As mulheres tornaram-se suportadoras das mensagens cifradas dos códigos patriarcais, e a violência é uma das principais marcas. Falar da violência doméstica é visibilizar a violência patriarcal (e quebrar uma das suas estruturas), pois a violência foi estruturada politicamente em espaços simbólicos para não ser vista. O que ela chama de “o poder da violência e a violência do poder”.
Femenías cita o pensamento de Célia Amorós: “agora que as mulheres tornaram-se sujeitos, o sujeito é desvalorizado”, marcando o fenômeno da feminização da pobreza. Mulheres vistas como “corpos máquinas”, produtoras subassalariadas, sem férias, sem horários, sem descanso, sem leis trabalhistas, com atividades características do tradicional trabalho doméstico. Mulheres a serviço de um trabalho de subsistência a serviço da globalização, praticamente sem reconhecimento.
A situação precária do mundo do trabalho impacta na figura do homem “chefe de família”, afetando a identidade dos “homens provedores”. Algo se rompeu nos códigos ético e político do contrato social e sexual. Helena Hirata  dialoga com Femenías quanto fala que as dificuldades de inserção das mulheres no mundo do trabalho devem-se a norma social que naturaliza seu lugar no mundo privado, criando no imaginário a dificuldade de conciliar vida profissional e vida privada. Hirata cita também a deficiência na qualificação profissional das mulheres (dificuldade de a ascensão e salários precários).
Para Femenías “o atual modelo de cidadania deveria ser deixada de lado porque o atual modelo de Estado não está à altura das mulheres”. As mulheres protagonizam movimentos identitários por cidadania e igualdade, reivindicações multiculturais, reconhecimento e inclusão. Marcas que permitem as identidades e a erupção das diferenças como legítimas a serem incluídas dentro de novos paradigmas: as mulheres rompem com o contrato sexual, pois não são de nenhum homem, são de si mesmas, autônomas, portadoras de direitos, circulando legitimamente no espaço público.
A crise de paradigma reside no choque entre as estratégias das mulheres e a auto-afirmação masculina, marcada pelo exercício da violência e da crueldade sobre alguém “subordinada”. Ela cita o que Foucault chama de biopoder, que é o disciplinamento do corpo das mulheres, normalização do corpo e da sexualidade das mulheres. Dessa forma o objetivo da violência é reintroduzir as mulheres ao corpo patriarcal e provocar um novo pacto. Sua apresentação encerra com dois desafios:
1) Desnaturalizar e visibilizar a violência contra as mulheres, a partir de uma sensibilidade social ante a violência nas suas diferentes manifestações: verbal, psicológica, física, moral. Atuar com urgência para quebrar as estruturas institucionais e simbólicas para desfazer as correntes pelas quais circulam as violências.
2) Detectar e denunciar os “umbrais” que remetem a níveis de tolerância da violência. Ou seja, quanto de violência uma sociedade ou indivíduo são capazes de tolerar como “normal”. Tatiana Dias menciona exemplo dessa situação no seu trabalho Violência de Gênero , “as mulheres sofrem agressão, mas há um senso comum que não questiona o silêncio da família e a ineficácia do Estado”.
No dia 26/8 a mesa redonda Trabalho e Violência, aprofundou aspectos da violência e da divisão sexual do trabalho, levantados na Conferência de Femenías, com a presença de Helena Hirata GERS/France) , Hildete Pereira de Melo (UFF) e Cláudia Mazzei Nogueira (UFSC), com a simpática mediação da Professora Mara Lago.
Hildete lembrou que o debate sobre o trabalho reprodutivo no Brasil surgiu com a explosão feminista, mas onde pouco se avançou. A divisão sexual do trabalho escondeu o significado do trabalho de cuidar da vida e marca as mulheres como se fosse o destino biológico cuidar da casa, o que o pensamento patriarcal nomeia como seres inferiores.
A pesquisa apresentada evidencia que a desvalorização do trabalho reprodutivo impede a adoção de metodologia de mensuração do Produto Interno Bruto (PIB) no país que inclua os fatores do trabalho doméstico. Caso fosse computado, a exemplo do que fazem Argentina e Espanha, impactaria em 13% o PIB do Brasil. Os indicadores econômicos comprovam toda mulher tem jornada de afazeres domésticos, independente da renda e que as mulheres sem remuneração têm jornadas muito altas.
O contingente de empregadas domésticas no Brasil é um dos maiores do mundo e 80% da mão-de-obra feminina está nas atividades de serviços (domésticas, comerciárias, serviço público e na educação. O trabalho Profissão Docente: uma questão de gênero , de Elizabeth Ângela dos Santos ilustra a feminização do trabalho docente, ligado a fatores: a) a escola como um espaço de controle da mulher; b) a crença da vocação das mulheres para a atividade, naturalizando a maternidade (cuidado, paciência, benevolência); c) formação; d) baixos salários. Helena Hirata também identifica as profissões ligadas ao cuidado como ainda de maior predominância no mercado de trabalho para as mulheres .
Sua conclusão é de que a violência contra as mulheres é multidimensional e complexa e se expressa no trabalho, no espaço público e na intimidade. A face da violência no mundo do trabalho tem a máscara dos assédios sexual e moral. Dados de uma pesquisa na França revelam que uma em cada 10 mulheres sofreu agressão no trabalho ao longo da vida. Segundo Hirata a reação de homens e mulheres ao assédio é diferente: “os homens exteriorizam a violência que venham a sofrer e as mulheres interiorização o sofrimento, pois há uma ausência de saídas institucionais, uma autodesvalorização e uma autoviolência”.
Na apresentação A feminização no mundo do trabalho Claudia Mazzei reafirma o pensamento de Hirata com dados da pesquisa no setor de telemarketing. É um dos segmentos que mais emprega e cria postos de trabalho (as mulheres ocupam 70% das vagas), mas também apresenta fatores de risco que afetam física (doenças que incapacitam) e psicologicamente (distúrbios como ansiedade e depressão).

O fim é o começo: a articulação entre o pensamento e a ação
Na conferência de encerramento Diálogos sobre gênero, classe, raça e pós-colonialismo, Jules Falquet (Universidade de Paris VII), da França, falou sobre Novas leituras feministas e lésbicas da mundialização neoliberal. Sua apresentação foi dedicada às mulheres trabalhadoras, camponesas, putas, lésbicas e feministas em luta foi um manifesto de esperança, por que traz a perspectiva da ação política: “Minha militância é contra o imperialismo e o capitalismo, e espero contribuir na transformação da realidade”.
Falquet fala a partir de seu engajamento militante e de bases teóricas como o feminismo autônomo, inspirado nas lutas da América Latina e Caribe; o feminismo materialista, que analisa gênero como uma relação social de poder baseada na divisão sexual do trabalho; e a imbricação das opressões de classe, raça, sexo, consolidadas nas relações sociais de poder.
Suas análises sobre globalização neoliberal identificam novas formas de trabalhos e conformações sociais, e a reestruturação do Estado: a) as leituras sociais são somente de classe e raça, não leva em conta a questão do sexo; b) leituras feministas que observam a internalização do care  e a reprodução social; c) desvalorização do trabalho e aprofundamento da divisão sexual do trabalho e d) centralidade da heterossexualidade como instituição.
Sobre a desvalorização do trabalho, os modos atuais de extração neoliberal é o trabalho assalariado (pago), o trabalho gratuito (servidão, escravidão) e o trabalho desvalorizado. Este último cresce com a mudança do perfil do trabalho na indústria e no campo (que fecha postos de trabalho) e amplia os postos no setor de serviços, devido ao desmantelamento do Welfare State , que levou à privatização do serviço público.
A análise de Jules complementa o pensamento de Femenías, pois vê a heterossexualidade como uma instituição amparada nas leis do Estado que conforma relações sociais de poder e constrói classe, sexo e raça. Uma mudança passaria pelo Estado, que segundo ela tem o papel de fixação de fronteiras e regras para o trabalho feminino. “O Estado constrói e naturaliza a divisão sexual do trabalho, o trabalho diferenciado”. A reorganização neoliberal do trabalho é baseada no rearranjo das relações sociais de classe, sexo e raça.  “A teorização e as lutas são fundamentais, mas é preciso estar junto com os grupos sociais que sofrem as conseqüências da globalização. Articular as lutas e as análises porque outros mundos são necessários para todas nós”.
Paola Bacchetta (Berkeley), dos Estados Unidos, apresentou seu pensamento sobre os atuais modos de teorização do poder, chamando a atenção para a analítica agregada, com “conformações inseparáveis de gênero, sexualidade, raça, classe, colonialismo e pós-colonialismo”. Esta categoria amplia a análise sobre articulações não-ouvidas e a visibilidade de grupos sociais que foram ignorados como sujeitos políticos portadores de direitos. O que ela chama de “resistência psíquica e transformativa, envolvimentos em direção ao inatingível, ao invisível, aos desejos inconscientes e prazeres que participem da produção de novos sujeitos e espacialidades temporais”.
Por falar em resistência, esta tem sido a palavra de ordem do movimento feminista e da luta das mulheres ao longo das décadas. Para além de resistir, o campo de estudos de gênero tem o desafio de continuar pesquisando, propondo, dialogando com os movimentos sociais, o movimento de mulheres e o Estado sobre a formulação e implementação de políticas públicas, dando concretude às urgentes e necessárias mudanças na vida das mulheres.

P.S.: Para o 9º Fazendo Gênero seria interessante uma mesa de diálogo entre representantes do movimento de mulheres e a academia.

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